Quando a escuta acontece: diálogos urbanos na obra de Ana Teixeira

Em uma cena diversificada de artes da escuta e formas de transmissão oral, um caso instrutivo é o de Ana Teixeira, artista atuante na cidade de São Paulo, criadora de uma obra muito diversificada, com boa parte fortemente calcada no diálogo. Ela propõe um diálogo que constela múltiplos objetivos, mas que proporciona a diferentes indivíduos, transeuntes na cidade, a ocasião de ser escutado, buscando converter a experiência de ganhar escuta em uma experiência de transformação. Ana permite observar como é que as intervenções urbanas planejadas e efetuadas por artistas, no desempenho de seu ofício, modificam a cidade; como eles se apropriam de seu espaço e de seu ritmo para transformá-la.

Entre as muitas obras da artista – documentadas em seu livro retrospectivo sugestivamente intitulado Para que algo aconteça – , vejamos três ações que se realizam enquanto conversas no espaço público. A primeira, Troco sonhos, aconteceu entre 1998 e 2006 e explorou a polissemia da palavra “sonho”. Consistia na montagem, em locais de grande circulação, de uma barraca simples na qual eram posicionadas bandejas com dezenas de sonhos fritos e recheados. Na parte frontal da barraca, um banner despretensioso anunciava: “Troco sonhos. Aceito todos os tipos: dourados, esquecidos, abandonados, vivos, mortos, presentes ou enterrados”.

O convite da artista era cristalino: para levar um dos bolinhos, os transeuntes tinham que deixar, gravado em vídeo, um sonho. A partir dos registros das trocas de alguns milhares de sonhos (a artista estima que seis mil tenham sido trocados nos oito anos de ação, em vinte cidades brasileiras), um vídeo com dez minutos foi editado. Um registro, mas não o objetivo da ação. A sua busca, revela a artista, era a de “provocar um pequeno curto-circuito no espaço urbano”, de gerar uma espécie de estranhamento do comum. Uma intervenção como essa instaura descontinuidades, tornando visível o que não era visível e evidenciando o diálogo, na cidade, como uma ocasião de comunicação do vivido, mas também do imaginado, do desejado, do inventado, do idealizado, do possível e do impossível.

Uma segunda ação realizada por Ana Teixeira foi Escuto histórias de amor (desde 2005), na qual a artista coloca-se em um ambiente aberto, senta-se em uma das duas cadeiras que carrega, instala uma placa com o título da ação na língua do país local e começa a tricotar, tendo produzido mais de dez metros de um bonito tricô vermelho até hoje. Colocando-se à espera de um interlocutor, a artista buscou investigar se as pessoas compartilhariam, com uma desconhecida e no espaço público, aquilo que é considerado privado e íntimo. A resposta foi sonoramente positiva.

O inusitado da ação atraiu ampla atenção da mídia – e, com ela, a ação ganhou dezenas de emuladores. No interior do trabalho de Ana, dois aspectos são particularmente interessantes. O primeiro é a evolução entre esses dois trabalhos de base narrativa: se a Troco sonhos estava atrelado um ato de registro (base para um vídeo posteriormente exibido em exposições), em Escuto histórias de amor não há registro nem resultado. A artista não cria outra coisa que não o próprio acontecimento – e, nos interstícios dele, o seu tricô. Ao passo em que imitadores pretendiam escrever livros ou gravar vídeos (alguns deles disponíveis em plataformas de compartilhamento) a partir das histórias que ouviram, o que Ana Teixeira criou foi um espaço narrativo público, no qual as histórias despontavam e desabavam, existindo pelo tempo exato da cumplicidade anônima entre o narrador e o artista.

Um segundo aspecto que fortalece o caráter acontecimental do trabalho de Ana Teixeira emerge da reflexão que ela faz a respeito de Escuto histórias de amor:

“A minha ideia inicial era escutar, e não necessariamente entender. Eu acreditava que eu podia escutar as histórias em línguas que eu não entendia e isso me interessava. Só que isso nunca aconteceu. Eu descobri que as pessoas, além de quererem ser escutadas, querem ser entendidas. Quando, na Alemanha, eles perceberam que eu não falava alemão, eles me contaram as histórias em inglês. Isso foi um dado de surpresa para mim.”

Em Troco sonhos e em Escuto histórias de amor, o público é o espaço no qual os sujeitos são interpelados; o público é também o conjunto dos sujeitos interpelados, instados a experimentar – individualmente, a partir de seus próprios repertórios, expectativas e projetos – pelo menos uma outra forma (a narrativa) de se relacionar com o espaço, com o outro, consigo mesmo, com suas lembranças e projetos.

Uma das ações mais recentes de Ana Teixeira, de 2019, traz a fala e a tomada da palavra pública não só para o centro da cena, mas para sua própria nomeação: Cala a boca já morreu. São distribuídos panfletos nas ruas, aleatoriamente, convidando mulheres a participarem de uma conversa, na qual – como nas rodas promovidas por muitos coletivos feministas – elas podem dizer o que não querem mais calar. As interessadas sentam-se, em um espaço compartilhado, para uma conversa. Dela são extraídas frases que traduzem o desejo de cada uma delas. As participantes são fotografadas segurando um cartaz com a frase eleita – e as fotos servem de base para desenhos feitos pela artista diretamente em espaços expositivos.

Por meio do desenho, Ana restitui e fortifica a dimensão pública de excertos potentes, quase que aforismos que ocupam o lugar de antigos ditados e oferecem novas máximas: “Fiquem atentos. Chutaremos sacos”; “Por que você pode e eu não?”; “Ser livre é não ter medo”; “Tire seus padrões de cima do meu corpo”; “Se você está procurando alguém para mudar sua vida… dá uma olhada no espelho”; “O estado é laico e meu útero também”; “Vestida ou pelada eu quero ser respeitada”. Inevitavelmente, irrompem frases que exteriorizam e duplicam a própria centralidade da fala nas expressões de emancipação das mulheres: “Eu não vou mais me calar”; “Eu não sou louca, eu tenho opinião”; “Não me cale”; “Preciso ser incisiva porque quero ser ouvida”; “Eu não preciso de um homem para legitimar minha fala”; “Eu não quero calar meu direito de ir e vir”; “Não vou mais calar minha virilidade”; “Não vou calar minha complexidade”; “Eu sei sobre o que falo”. São falas destituídas da dimensão dialógica que lhes deram origem, mas que – pelo seu despojamento formal – suscitam um colóquio direto com o espectador, agora inapto a ignorá-las.

Trabalhos como esses são trabalhos artísticos – mas são também acontecimentos memoriais e narrativos que lançam o valor do diálogo para além da narração e da narrativa. O que está em jogo nesses acontecimentos narrativos não é a qualidade das informações intercambiadas, a capacidade de ampliação do conhecimento sobre determinado tema, os novos ângulos oferecidos pelo narrador. Também não está em jogo, primordialmente, a qualidade do “processo de entrevistar/ser entrevistado”, a adequação ou a inventividade metodológica. Está em jogo o próprio encontro e a transformação na experiência e na percepção individual sobre si e sobre o mundo sensível que ele pode motivar; a produção – estética, portanto – de alguma coisa que não existia antes da entrevista, e que não é a própria entrevista. Está em jogo, também, a asseguração e a ampliação de uma presença (física, simbólica, cultural, política) antes ausente ou marginal no espaço público. Como escreveu Vera Pallamin em um de seus importantes estudos sobre arte urbana, ações como essa podem “criar situações de visibilidade e presença inéditas, apontar ausências notáveis no domínio público ou resistências às exclusões aí promovidas, desestabilizar expectativas e criar novas convivências”.

É justamente esse acontecimento que define o valor (não mercantil) de uma ação de arte pública, de uma intervenção urbana como estas realizadas por Ana Teixeira. É a (re)construção social do espaço, que transforma o espaço do passante em um espaço de experiência compartilhada – para quem a vivencia ou testemunha. Para nós – pesquisadores comprometidos com estudos históricos interdisciplinares, com o desenvolvimento da prática e com a discussão sobre história oral e pública – essa não é, nem deve ser, uma dimensão preponderante. No entanto, é uma dimensão presente ou ao menos latente em nossa prática, a ser reconhecida se não explorada. Que mal faria se entrevistas públicas, além de ajudarem a ampliar conhecimento e a discutir a metodologia da história oral, colateralmente ajudassem a propor novas relações entre os diferentes públicos a que fazemos referência e as questões socialmente vivas que orientam nossos projetos? Assim como a história oral, as intervenções urbanas de Ana Teixeira convidam as pessoas a pensarem duas vezes sobre suas próprias vidas, sobre seus significados; a se engajarem em uma ação que é, por natureza, fruto de uma autoridade compartilhada; a atribuírem sentido às suas próprias vivências à luz de correntes culturais, históricas, sociais, mais amplas; a compreenderem suas experiências no interior de quadros – sejam eles os da vida urbana, sejam eles os de um evento histórico – compartilhados.

 

 

Ricardo Santhiago é historiador e comunicólogo. É professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde coordena o Centro de Memória Urbana (CMUrb) e o Amabile – Arquivo da Memória Artística Brasileira. É vice-presidente da Associação Brasileira de História Oral (ABHO) e editor da revista História Oral, no biênio 2020-2022. É graduado em Jornalismo (PUC-SP, 2004), com especialização em Jornalismo Científico (Unicamp, 2006); mestre e doutor em História Social (USP, 2009/2013), com pós-doutorado em História (UFF, 2015). Seu trabalho interdisciplinar concentra-se nas áreas de história pública e história oral, comunicações e artes, teoria e metodologia de pesquisa. É autor e organizador de diversas obras, dentre as quais se destacam os livros Solistas dissonantes: História (oral) de cantoras negras (2009), História oral na sala de aula (2015) e História pública no Brasil: Sentidos e itinerários (2016).