É tarde, mas ainda temos tempo

É tarde, mas ainda temos tempo

Quando passamos pelo Centro Universitário Maria Antonia, localizado no bairro Vila Buarque, na cidade de São Paulo, é quase inevitável escapar do que evocam a rua e os cantos do prédio: tiros, explosões de coquetéis molotov, gritos de estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP que aqui se reuniam em assembleias em 1968 (ano fortemente marcado pela resistência estudantil contra o regime militar). Em 2 de outubro de 1968, por se incomodarem com um pedágio realizado por estudantes da USP, que queriam custear o congresso da União Nacional dos Estudantes, estudantes da Universidade Mackenzie, ligados ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC), bem como forças militares responsáveis pela manutenção da legalidade, atacaram violentamente o prédio. O conflito conhecido como A Batalha do Maria Antonia, que durou dois dias, ocasionou a morte do estudante secundarista José Guimarães com um tiro vindo do prédio do Mackenzie. A Batalha do Maria Antonia é considerada um dos gatilhos para o enrijecimento do regime, que dali a dois meses, promulgaria o Ato Institucional Número 5.

Em 1993, o prédio reabriu com a tarefa de ser arena de discussões sobre arte, cultura e direitos humanos, deixando latentes tempos de convulsão como os de agora, tão difíceis de sobreviver. É tentando convocar energias para construção de um lugar de troca e encontro que Ana Teixeira adere com seus trabalhos/ações a alguns dos espaços do prédio. Em É tarde, mas ainda temos tempo, a artista apresenta 14 trabalhos, entre proposições inéditas (“Bandeira”, “Ninguém manda no que a rua diz”, “Encontre-se”), ações realizadas no próprio prédio do Centro Universitário Maria Antônia e arredores (“Cala a boca já morreu”, “Escute!”) e traduções/atualizações de trabalhos produzidos ao longo dos seus vinte anos de trajetória (“Em contato”, “Empresto meus olhos aos seus”, “Falta-me qualquer coisa que seja feita de vento”, “Escuto histórias de amor”, entre outros).

O título da mostra propõe articular algumas dimensões e sensações de tempo: o de processo de tradução com o qual Ana atualiza e reinventa tempos de encontro e acontecimento de seus trabalhos – reconstituindo-os numa vontade de fazer pulsar outras experiências – e um tempo de urgência e angústia que convoca o desejo de agir a qualquer custo. Nesses dois eixos em que se alicerça a mostra, os procedimentos de Ana costuram e atravessam as ficções e resíduos poéticos de seus trabalhos: resistir, insistir, traçar encontros. Enfrentando a lógica dos dispositivos de opressão que nos impõem margens de ação cada vez mais encurtadas, Ana age nas brechas do tempo incerto – e apesar das barreiras que já erguemos, como sujeitos, para viver em sociedade – na busca de alguém que não quer ser buscado e/ou não espera ser visto. Daí uma troca imprevisível, inesperada e que não apresenta preparo prévio ou protocolos estabelecidos, mas tem a vontade do encontro como ignição. Encontro que acaba por aproximar sujeitos que não se conhecem, mas que podem se identificar, pois se alimentam da mescla de subjetividades postas em exterioridade (social, cultural, sexual, política, de classe, de raça, de gênero e em todas suas hipóteses de fluidez), num quando em que não se perdem a aspereza e a diferença de estar diante de outre[1]. Encontro que instaura sutilmente um fluxo de narrativas, de confissões, de ritmos de muites eus que podem tornar-se nós. Encontro que pode acolher o corpo, o gozo de estar junto, os sentidos de existir, numa espécie de alquimia de reinvenção de si diante de outre.

Como mulher, como artista, como ser político atuante e porosa à esfera pública da cidade, Ana vivencia a polifonia da escuta, guiada pelo sensível, confiando na organicidade da troca. É nesse contexto em que ela atua e também no contexto da supressão de tempo, seja para o encontro, para a convivência sem maiores pretensões, para a militância. Na escassez de tempo para os gestos e ações precisamente arquitetadas, Ana age porque é preciso reagir e não sucumbir. Pois parece mesmo não haver lógica nas nossas ações e gestos que sobrevivam à intempestividade das urgências contemporâneas, do presente de sufocamento instaurado. “Todo gesto é tarde demais (urgente) e cedo demais (nunca estamos preparados)”, como disse o artista Pedro França ao incorporar as reflexões de Rosa Luxemburgo numa fala menos vestida de rigor teórico e, por isso mesmo, mais arrebatadora.

Nesse corte de tempo, de ausências de chances para os desvios às condutas impostas, em que o desejo também é ameaçado e suprimido, para Ana, o encontro é um instante de reapropriação da potência de criação, tanto do ponto de vista da invenção artístico-poética (em seu sentido mais amplo) como do ponto de vista de um exercício de subjetividades e imaginações interagindo. Assim, estes encontros que são convites lançados ao vento, muitas vezes, sobrevivem ecoando em passantes ou públicos desapercebidos, deixando pistas, vestígios do percurso, da pulsão.

O trabalho de Ana é o acontecimento dessas experiências que se desdobram em rastros de pensamento, impregnados de muitas existências. Suas obras podem ser percebidas na temporalidade e duração do acontecimento das ações, nos registros em imagens e textos arquivados, nas traduções materiais experimentadas em diversos suportes pela artista. São sua matéria prima a palavra e o desenho, que colaboram – dando mais consistência à passagem e participação dos corpos envolvidos e dos laços constituídos – e, ao mesmo tempo, fazem surgir o inigualável de todes. Ana assinala na palavra e no desenho as marcas singulares de todes com quem vivenciou as ações e, nessas distinções, traça presenças diversas do corpo social, daquilo que vai para fora de cada si. E, por isso, essas erupções de subjetividades possibilitam alguma ligação entre nós e o mundo compartilhado, onde nos inscrevemos como sujeitos desejantes e cúmplices em nossas próprias diferenças, com diversos laços e contradições afetivos, políticos, sociais. É nessas inscrições tortuosas e não coincidentes onde pulsam as fabulações artísticas de Ana Teixeira, na tentativa de que mais alguém as perceba, quem sabe, como planos para que possamos nos aliar às pessoas que constroem pontes e não muros.

Galciani Neves

(Agosto/2019 – quando contabilizamos mais de 200 dias de um governo que oferece armas, se notabiliza pela tacanhice ideológico-moral e legaliza a mineração em terras indígenas)

 

[1] Nesse texto, optou-se por abandonar o uso do “X” como linguagem supostamente “neutra” para flexão de gênero, pois é impronunciável, e, portanto, inaplicável à linguagem falada. Na tentativa de escrever de maneira não sexista, a redação do texto adere ao uso do “e”.